Por muito tempo, geração após geração pós-guerra, existia uma “tela de cinema” diante de nós. E o roteiro do filme era: perseguir uma carreira de crescimento linear, que nos proporcionasse satisfação e ganhos. Década após década, esse foi o símbolo do que seria ser “bem sucedido”. Nossos pais e avós tinham o maior orgulho de que estudássemos e, ao deixar a faculdade, engatássemos um trabalho perene e que nos desse condições de formar família, comprar casa, ter carro e um lastro financeiro para a aposentadoria. Recessão, o aumento da expectativa de vida (e a necessidade de trabalhar por mais tempo) e o avanço da tecnologia (facilitando a gestão remota de quase tudo) são alguns dos fatores que, combinados, nos empurraram a rápidas mudanças deste filme. Ainda que a briga entre velhas e novas crenças seja um fantasma permanente, o surgimento do profissional com múltiplas carreiras é o grande exemplo disso.
Slash Career, Carreira por Portfolio, Multicarreira, Carreira Hibrida. São diversos os nomes, pontuados em diversos artigos. Para este artigo, vamos usar o termo Slash Career e explico o porquê.
O termo foi originalmente forjado por Marci Alboher (escritora, palestrante americana e Vice-Presidente da ONG Encore – um Centro de Inovação em liderança) em seu livro Uma Pessoa/Múltiplas Carreiras. Diz respeito aos profissionais que desenvolvem mais de uma atividade (e fonte de renda) ao invés de optar por uma carreira linear. O termo virou apelido devido ao uso do “hífen” ou da “barra” (Slash) entre funções. A atitude surgiu inicialmente entre os Millennials, que preferem uma rotina flexível, ao invés de vincular-se linearmente a uma empresa. O “Slasher” tem sido frequentemente mencionado em artigos como um “freelancer multiprofissional”.
Um advogado apaixonado por culinária e que esteja pondo em prática o seu mindset Slash Career, pode, por exemplo, advogar para uma ONG pela manhã, Gerenciar um escritório direitos autorais à tarde e escrever conteúdo para um blog especializado em cozinha saudável à noite – e não necessariamente nesta mesma ordem. Vejamos outros possíveis exemplos de Multicarreira:
- Tradutor/Professor/Fornecedor de conteúdo
- Chef de cozinha/Vendedor de Seguros/Escritor
- Gerente de Vendas/Músico/Professor de Inglês
- Músico/UberDriver/Professor de Libras
- Sócio-investidor em uma petshop/ DJ/ Fotógrafo
- Padeiro/ Professor de Karatê/ Dono de uma loja de artigos esotéricos
É possível imaginar um sem número de novos cruzamentos que podem ou não ter alguma correlação entre competências. Muito provavelmente terão em comum a junção entre a paixão e o pragmatismo de ter que pagar as contas no final do mês. Vejamos algumas vantagens da cultura Slash Career:
- Flexibilidade de tempo – não há compromisso com horários formais e sim com a entrega. Há quem seja mais produtivo a noite do que durante o dia e isso deve ser considerado. Mas engana-se quem pensa que a liberdade de horário está dissociada de responsabilidade e organização, pelo contrário.
- Múltiplas fontes de renda – os ganhos se dão por projeto e não mais de maneira linear, mensal, como ocorre com salários. Slashers ficam também mais sujeitos às flutuações de cada atividade exercida. Porém, com mais entradas, é possível diluir os riscos do fluxo de caixa. E os ganhos podem ser muito maiores do que um profissional que exerce uma única atividade e apenas uma fonte de renda.
- Foco nas paixões – alguém que ama escrever, adora cozinhar e é um advogado por vocação, pode exercer as três paixões simultaneamente, obedecendo a todos estes interesses
- Justiça com o passado – você sempre adorou pintar e desenhar, ou sonhava ser locutor de rádio. Mas seus pais o direcionaram para o conforto de uma carreira em Engenharia Civil. Bate à sua porta a oportunidade de seguir sendo bem sucedido e, ao mesmo tempo, fazer aquilo pelo qual seu coração sempre bateu.
- Aprendizado Constante – ter múltiplas carreiras implica em ter que estudar ou ter contato com novos conteúdos quase que diuturnamente. Simplesmente porque não dá para ser profundo em uma coisa e raso noutra. E é sempre desafiador espanar a poeira do conhecimento, ter contato com novas perspectivas e novas competências.
- Desapego às “identidades” – Não há crise em ser especialista em jardinagem, chefe de cozinha e arquiteto, ao mesmo tempo. Títulos não põem comida na mesa nem necessariamente trazem a verdadeira realização.
- Estímulo à diversidade – variar é o que dá emoção à nossa vida e permite descobrir em nós potenciais os quais nem sonhávamos. Esportistas de alta performance costumam ter um esporte secundário, alternando o treino e evitando o burn out.
- Válvula antiestresse – permite canalizar o tempo e a energia flutuando entre uma paixão e outra, ao invés de depositar toda a energia em uma única e estressante atividade.
- Expansão multilateral – ao invés de apostar todas as fichas e energias em uma carreira vertical, dilui-se o risco podendo expandir seus horizontes em várias direções.
Diversos artigos sobre o tema também relacionam “o lado sombrio da força”. Como tudo em nossas vidas, temos que olhar para as possíveis desvantagens:
Contas para pagar são sempre lineares – boleto não aceita desaforo. Largar tudo para exercer as paixões, sem ter um plano de transição pragmático e bem estruturado, pode ser tremendamente desastroso.
Mais tarefas, mais chance de erros – um Slasher tem que ter um nível altíssimo de autodisciplina e organização, para conseguir dar conta de múltiplas tarefas. Não há espaço para queda de produtividade e nem de qualidade. Estamos falando de reputação em jogo.
Perder clientes é um luxo não aceitável – atuando como um Freelancer, cada cliente conta. Portanto, há que se ter muita resiliência e atenção ao cliente. Rejeitar/escolher trabalho, perder prazos ou perder projetos por falta de qualidade, definitivamente não pode acontecer.
Percepção de “livre atirador” – determinados segmentos, empregadores ou empresas mais tradicionais não estão culturalmente preparadas para contratar Slashers. Por isso, tendem a percebê-los como profissionais “sem engajamento”, “sem comprometimento” ou com uma rotina “caótica” e “desfocada”.
Descuido com a saúde física e mental – o tempo e a energia despendidos na tentativa de equilibrar todos os pratos podem significar uma rotina extenuante e sem hábitos saudáveis. É fundamental equilibrar trabalho, saúde e vida pessoal.
Combinação entre paixão e talento – só porque tenho paixão por determinada atividade não quer dizer que tenha talento suficiente para transformar aquilo em meio de vida (e de receita).
A rotina pode ser cansativa – Slashers devem se preparar para trabalhar 10, 12 ou 16 horas por dia e em finais de semana. Pode não ser uma regra todos os dias, mas vai ser inevitável. Simplesmente porque o aprendizado, a preparação e o cumprimento de prazos e metas vão ditar o ritmo.
O futuro (do presente) das empresas é ter menos funcionários
Segundo Stephen Toft (consultor organizacional), as organizações serão cada vez mais constituídas de diminutos grupos de funcionários cercados de uma imensa nuvem de profissionais autônomos. As próprias organizações, mediante o cenário de crise mundial, procuram modelos alternativos que possibilitem manter profissionais e, ao mesmo tempo, dar mais leveza, flexibilidade e agilidade às suas estruturas, rumo à produtividade.
A Pandemia pela Covid19 acelerou a inclusão tecnológica, e a realidade do home-office trouxe junto um sério questionamento sobre a real necessidade de tanta gente em headquarters. A mesma metralhadora giratória das crenças começa a pegar nas pesadas organizações de cultura linear. O modelo se justifica? Este ponto reforça o mar de oportunidades para quem deseja desenvolver uma carreira multifacetada. Porém há um grande caminho a percorrer até que profissionais Multicarreira sejam tão bem percebidos quanto os que tem carreiras lineares.
Pensando com a cabeça de quem contrata, porque Slashers podem ser ótimas contratações? Vamos às dicas:
São autodisciplinados – focam na entrega, tomam a iniciativa e buscam alternativas.
São automotivados – acostumados com os “perrengues” do dia a dia, não se desmotivam por qualquer dificuldade. Focam na solução e não no problema, pois problema não paga conta.
São multitarefa – como aprendem o tempo todo, desenvolvem múltiplas habilidades e visões de mundo. Essa riqueza de repertório pode significar ganho de tempo e consistência nos projetos. Em tempos de crise, onde a Espada de Salomão tem que imperar, quem os empregadores vão querer manter? Quem só sabe fazer um trabalho ou aquele que é capaz de se engajar nos projetos B, C e D por conta de habilidades desenvolvidas?
São criativos – na rotina do Slasher, a diversidade e a necessidade andam de mãos dadas, obrigando o profissional a, novamente, apresentar soluções criativas, porém com os pés na realidade.
São mais descomplicados e baratos – legalmente, os acordos envolvem aspectos trabalhistas bem mais simples e objetivos – o foco está valor da entrega, no prazo de vigência e sem protecionismos. E especialmente no caso do Brasil, por melhor que possa ser a remuneração destes profissionais, os custos trabalhistas envolvidos bem são menores.
É evidente que não é da noite para o dia que se cria uma Slash Career. As atuais circunstâncias antecipam o movimento, tais como desgastes profissionais de toda a ordem, o cenário macroeconômico e o dilema do desemprego. Hobbies viram meio de vida, o isolamento social obriga a buscar alternativas jamais consideradas. Mas exige, acima de tudo, intenso desapego às estruturas lineares, aos títulos e identidades corporativas, bem como preparação e orientação adequadas para, por exemplo, ter por companhia a constante incerteza financeira.
Estou sendo repetitivo em alguns pontos para que não se crie uma visão irreal e romanceada sobre esta trilha de carreira.
Aí vão algumas dicas de como começar a construção de uma Slash Career:
- Precisa focar no que brilham os olhos – Antes de dar qualquer passo, é absolutamente necessário listar as coisas que estão guardadas e que realmente te fazem flutuar. Aquilo que você sempre sonhou mas nunca confessou de fato, nem no espelho. Pode ser útil a busca de um profissional para ajudar neste processo. E anote tudo.
- É preciso um bom Plano – Quer seja de múltiplas ações ou uma única ação verdadeira para cada uma estas paixões, considerando-as como um futuro meio de vida. Prepare uma agenda diária, semanal, mensal.
- Estudar é o nome do jogo – Mentoring, cursos, artigos, simulação de casos reais, conversas com especialistas nas áreas escolhidas. O aprendizado será constante e absolutamente necessário. As mãos devem estar na massa o tempo todo. Água parada, apodrece.
- “Networking” mode on – Há que se criar proximidade com outros Slashers, agendar participação em eventos sociais relacionados às novas atividades, fazer contato com profissionais de referência, interação com artigos e participações em debates, com o objetivo de resinificar a rede. O retorno vem, mas não vai ser da noite para o dia.
- Todos somos um produto – Saber comunicar esse novo momento de forma estruturada e serena é fundamental. Ter múltiplos empreendimentos oferece uma visão aos outros sobre nossa diversidade, nossos interesses e habilidades. E também dá fortes indicadores de liderança, capacidade de mobilização, motivação e visão multifacetada. A comunicação correta é capaz de esmagar uma crença que, citada de forma superficial, pode ser injusta: “quem faz tudo, não faz nada direito”. Reducionismos como este são muito comuns em ambientes competitivos como o mundo corporativo. Como essas novas informações devem soar para chefes, clientes, parceiros? Como explicar este movimento, essa “repaginação” da marca para o mercado? Quais ferramentas e qual o melhor repertório para comunicar?
Por fim
Dá para imaginar a educação para a carreira fazendo analogias com a educação financeira. E, como bons latinos, para ambas estamos devendo. Vamos pensar o seguinte: o caminho da inteligência financeira passa pela diversificação dos ativos – a popularização das plataformas que ensinam o pequeno investidor a se virar é prova consistente disso. Se estamos aprendendo a diversificar com nossas poupanças, porque soaria estranho fazer isso com nosso meio de sobrevivência?
Outro contrassenso comportamental é que não somos seres naturalmente unidimensionais. Desta forma, não tem sentido pensar o contrário a isso quando o assunto é manutenção da subsistência. Executivos estratégicos começam a fazer o mesmo movimento em suas carreiras. Em 2017, haviam 57 milhões de “freelancers” nos EUA. Com o forte impacto da crise, a previsão é que dobre esse efetivo até 2027. Podemos dizer, de forma simples, que o Slash Career é a “gourmetização” do trabalho freelancer e isso não é demérito, pelo contrário, é uma evolução.
De certa forma, tudo o que desenvolvemos como atributo profissional pode trazer mais energia, vigor e benefícios mútuos para as carreiras a serem escolhidas. Energizados, nos tornamos seres ainda mais criativos, mentalmente mais saudáveis e produtivos. Esse reflexo acaba por contaminar famílias, amigos e a vida em comunidade. Imagine o efeito desse “estoque positivo” em tempos de crise?
Como bem nos provoca Sofia Esteves, em seu excelente artigo para a Revista Exame, com esse enorme evento pandêmico, estamos aprendendo, dentre outras coisas, que o dito “mercado” é plural e resultante do que somos e fruto de nossas descobertas. Segundo Sofia, o linear não existe mais. E alerta para o fato de que a retomada depende do nosso desapego a ambientes estáveis como termômetro da nossa felicidade. Será questão de sobrevivência e de saúde mental abraçar a Cultura da Impermanência.
Estamos numa jornada de redescoberta. E acredite, vai ficar tudo bem. Como diziam nossos país: Fique tranquilo que do chão não passa. Então, levante e ande. Tem muito trabalho pela frente.
Anote algumas dicas para ler sobre o assunto (base deste artigo):
- Futuro do Trabalho Humano – Peter Toft (14/11/2018)
- What Are ‘Slash’ Careers And Why You Need One – Rachel Dresdale (27/06/2017)
- What is Slash Career? And Why You Should Care – Kevin Mun (10/02/2020)
- Slash Career: Why Millenials Choose to Take Multiple Careers – Ana Haotanto (09/09/2019)
- A tendência do Slash Career – Dorothy Dalton (29/11/2018)
- Slash generation is coming – Professor Victor Wong (28/06/2018)
- What Are ‘Slash’ Careers And Why You Need One – Anne Shoemaker (nov 2018)
- Como adaptar sua Carreira à Cultura da Impermanência? – Sofia Esteves, Exame Online (junho de 2020)